
Mecânicos por formação, os cegonheiros paraguaios desafiam a altitude andina e a solidão do deserto no transporte de carros importados pelo porto de Iquique, no Chile
Romulo Felippe
Argentina/Chile

Durante a travessia da Cordilheira dos Andes, utilizando a nova rota comercial pelo Paso de Jama – na região Norte de Argentina e Chile – são os caminhoneiros paraguaios que dominam o horizonte local do transporte rodoviário de cargas. Dos mais de 100 caminhões que rompem diariamente a aduana andina, pelo menos 40% deles são oriundos do Paraguai. Em sua imensa maioria são caminhões cegonha – cujos motoristas são conhecidos pelas bandas do Deserto do Atacama como ‘los cigüeñeros paraguayos’.
Provindas de Assunción ou Ciudad del Leste, as ‘cigüeñas’ (cegonhas) seguem até a cidade portuária de Iqueque, no Norte Chile. De lá retornam carregadas de carros usados, em geral em bom estado, importados do Japão. O número de veículos transportados nas carretas chega a 15 mil ao ano. Existe, inclusive, uma associação oficial, o Centro de Transportistas Cigüeñeros del Paraguay. Além de carros, os caminhões paraguaios também transportam eletrônicos e afins que chegam da China, Índia e Paquistão.
Mas o que chama mais a atenção nas Rutas 52 (Argentina) e 27 (Chile) é a quantidade de caminhões paraguais quebrados à beira do caminho. Em um dia de percurso a Revista Caminhões flagrou nada menos que oito deles espalhados pelas rodovias e com problemas mecânicos. O motivo é o estado sucateado da frota paraguaia, com brutos que ultrapassam fácil os 20 anos de uso. Reza a lenda que, antes de assumir o volante nas rotas internacionais, os caminhoneiros de lá passam dois anos nos pátios das transportadoras aprendendo noções de mecânica.

- Já presenciei paraguaio parado na estrada com o motor do lado de fora do caminhão, no meio do deserto. Eles realmente sabem tudo de mecânica!, confidencia o caminhoneiro brasileiro Bruno Pereira, natural de Uruguaiana e que faz o Paso de Jama há mais de um ano.
O motorista paraguaio Victor Fernandes, de 39 anos, é um desses casos. Ele conversou com a reportagem enquanto consertava o radiador de seu velho Scania 360. “Faço de tudo um pouco na mecânica do caminhão. É um ítem fundamental para não ficar quebrado por muito tempo na estrada”, conta. Funcionário da empresa Transporte Curupayty, ele dirige através dos Andes há 15 anos e recorda de quando perdeu um amigo, cujo caminhão despencou em um precipício. “Estávamos em comboio. Foi triste vê-lo no fundo do vale, agonizando antes de morrer, sem que pudéssemos fazer nada”.
Victor conta que seu grande pesadelo são as quadrilhas bolivianas: “os piratas esperam falhar o freio do caminhão nas grandes descidas para nos atacar. São 400 quilômetros de nada, em uma terra neutra, de ninguém, na fronteira entre Argentina e Chile”. O paraguaio faz duas viagens por mês até Iquique, puxando um total de 26 toneladas, e garante que só há um caminho para sair com vida dessa rota mortal: “não se trata da verocidade da natureza, com tempestades de neve, areia e riscos afins. É uma questão de proteção divina. É reza, rezar e rezar. Só Deus pode nos proteger nesse caminho. Mais nada”. Ele fala ainda que, independente da nacionalidade do caminhoneiro, a solidariedade é marca registrada na rota.
Viajando com a esposa como companhia, Richar Souza (31) é outro cegonheiro paraguaio assíduo nas estradas andinas. Ele perfaz o caminho de 3 a 4 vezes por mês há 7 anos, conduzindo o Scania 113 HS (modelo 1993 de 380 CV importado da Suécia), de propriedade da Trans Seguridad. Richar transporta 11 carros usados por viagem e conta que a escassez do diesel no Norte argentino, que “dura já dois anos”, é um sofrimento – com horas na fila à espera do abastecimento. Dirigindo por até 9 horas diárias, recebe cerca de U$ 1,5 mil dólares mensais. Ao lado da esposa Viviana Britto e o filho aconchegado na boléia, diz que os Andes devem sempre ser respeitados pelos perigos que apresentam.
- As maiores dificuldades para o caminhoneiro estão na Cordilheira. É muito perigoso. Mas apesar disso é raro um motorista paraguaio de acidentar. As maiores vítimas, nesse caso, são os caminhoneiros argentinos!, analisa.
Além das dificuldades geográficas e mecânicas estrada afora, os cegonheiros paraguaios se defrontam com outros problemas. Ano passado – durante uma nevasca que deixou centenas de caminhões parados no Paso de Jama, na província argentina da Jujuy – 120 mil dólares teriam sido furtados em espécie na aduana, segundo o Centro de Transportistas Cigüeñeros del Paraguay. O dinheiro seria para pagar os carros importados pelo porto de Iquique. “Desde 1990 que não mudou nada por aqui, nem mesmo os funcionários. E olha que existem muitos mais caminhões transitando atualmente”, explica o caminhoneiro paraguaio Salvador Men de Sá, de 52 anos, desde 1983 fazendo transporte internacional no trecho (quando ainda era uma estradinha de terra).
Salvador conta que leva três dias, em média, de Assunción a Iquique, passando por seis aduanas entre ida e volta. Perdendo cerca de duas horas em cada uma delas. Ele aponta a “falta de ar, os pneus furados e o desgaste dos freios, em função da geografia andina”, como os maiores desafios do trecho. “Sem nos esquecer dos ladrões de carga e de caminhões, infestados na região”, recorda. No comando de seu Volvo VL, dotado de motorização com 370 HP’s, Salvador Men de Sá transporta 24 toneladas de mercadorias variáveis em uma composição rodoviária de 18 metros de comprimento. Apesar do salário de ml dólares, fiz que precisa conduzir nada menos que 12 horas diárias. Lembra que ano passado ficou 15 dias parado, com o bruto encoberto por dois metros de neve. “Tem que estar atendo onde passa e também parar para ajudar o colega com o caminhão quebrado. Mas uma coisa tenho certeza: meu filho não será caminhoneiro!”, sentencia. Se a vida do motorista rodoviário brasileiro já é difícil, o que dizer então dos irmãos paraguaios…
Na travessia da imensa Cordilheira dos Andes, em pleno vilajero de Susques (a quase 5 mil metros de altitude), a Revista Caminhões encontrou com o caminhoneiro paraguaio Ernan Gallagher Acuña, 37 anos – há seis deles no trecho entre Argentina e Chile. Estava deitado sob a cegonha consertando o tanque de combustível, furado durante a viagem. O dia amanhecia na imensa cadeia de montanhas, aplacando o frio que pode chegar a 20 graus negativos. Dali seguimos juntos até o Paso de Jama, colhendo as histórias desse estradeiro paraguaio.
Natural de Fuerte Olimpo, na fronteira com o Brasil, Ernan conduz com maestria seu Scania 113, versão de 1996 dotada de 380 cavalos de força. Em cada viagem, que dura uma semana, roda um total de 4,8 mil quilômetros para buscar os carros usados em Iquique. E ele faz de 3 a 4 viagens por mês. “O maior perigo é o risco de avalanche na Cordilheira. Em 2010 fiquei 17 dias preso na neve”, lembra, mostrando que um problema mecânico comum na região é o radiador congelado.
Sobre os piratas bolivianos, o paraguaio acredita que o cegonheiro corre menos riscos “por ser um veículo dotado de implemento baixo”: “certa vez roubaram um colega, mas o conjunto rodoviário ficou preso na estradinha de terra que os conduz à Bolívia”. Ernan, que é pai de quatro filhos, diz que a vida estradeira é sofrida e que chega a dirigir por 20 horas em um único dia. Conta que aconselha os filhos a estudar e buscar outra profissão.
Católico praticante, o caminhoneiro conta que já testemunhou – com amigos, inclusive – fenômenos indescritíveis na região andina: “estava tocando a viagem noite afora através da Rota 42, que corta o Deserto do Atacama rumo a Iquique. Vi um Ovni (Objeto Voador Não Identificado) descer das montanhas em minha direção. Estava em comboio com outros colegas. Todos paramos e, perplexos, avistamos por minutos o disco voador cruzando a cordilheira”.
Outro ‘causo’ diz respeito a uma aparição fantasmagórica. “Estava viajando à noite e, exausto, parei para dormir no meio do nada, em Calama, no Chile. A noite estava serena, sem nenhum vento. De repente senti a cabine se mexer violentamente. Olhei pela janela e vi com clareza o vulto de uma mulher. Rapidamente liguei o caminhão e só parei quando o dia amanheceu”, conta. Segundo ele, muitos caminhoneiros já viram essa mesma ‘alma penada’, que asombraria os caminhoneiros por ter sido, em vida, vítima dos mesmos em um lendário atropelamento no Deserto do Atacama. Acredite ou não, são relatos colhidos em estradas andinas. Coisas do Atacama…
Fonte Revista Caminhões.com.br
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